domingo, 6 de janeiro de 2008

A fantástica fábrica de indivíduos


[The Wall. Dir. Alan Parker]









A fantástica fábrica de indivíduos.
por Zuleika Zimbábue

25 de abril de 1984. Dia da votação da Emenda Dante de Oliveira, que concretizaria a possibilidade de termos novamente eleições diretas, e democracia, no Brasil. Eu tinha nove anos. Era uma criança burguesa e gorducha. Filho de empresários do ramo “calçadista”. Passávamos o final de semana num rico hotel na cidade de Gramado, serra gaúcha. Era véspera de Páscoa, pois me lembro que assistia, com certa irritação, “A fantástica fábrica de chocolate” na “Sessão da tarde”, sendo interrompida constantemente pela transmissão, ao vivo, da tal votação. Era uma criança, na década de oitenta, ainda sem o up-grade nos neurônios, que as crianças parecem receber tão cedo hoje em dia. Não tinha a menor noção do que estava acontecendo, da importância daquela votação (ainda que frustrada naquele dia), da histórica mobilização popular que acontecia em volta daquele momento decisivo para o país. Para todos os indivíduos, todos os cidadãos. Era um pequeno burguês alienado com a nata do pensamento: “governe quem governar, o nosso está garantido”.


Mas eis que o país parecia amadurecer, abrindo-se novamente para a democracia; fosse por pressão popular, ou pela ineficácia comprovada do governo militar, teríamos novamente eleições diretas, teríamos assegurado nosso direito de eleger nossos governantes! 1989, agora sim! Poderíamos mostrar nossa sabedoria, teríamos a recompensa máxima de anos de luta pela abertura política! Mostraríamos à “eles”: um país próspero e democrático, governado por um civil, eleito pelo povo! E assim fizemos! Colocamos Fernando Collor de Mello na presidência da república! (...) Bom... enfim, dizem que o amadurecimento verdadeiro é sempre tortuoso. Também, não votávamos pra presidente há muito tempo. É preciso dar um desconto. Aprender a votar pode levar muito tempo. É preciso muito estudo. Devia haver faculdade pra isso até... Mas quem seria o professor, não é?

Nos tempos das contas confiscadas (congeladas) pela Zélia Cardoso, eu já não era mais um alienado... Mas ainda era um burguês. Nossa empresa sobreviveu ao Plano Collor, vejam vocês! Mas não sobreviveu à corrupção do país. Quando minha mãe decidiu vender a empresa, os compradores “conseguiram” uma concordata falsa, fecharam as portas e deram o calote em todo mundo: funcionários, fornecedores, no governo e, é claro, em nós. Nunca recebemos nada pela venda da empresa criada pelo meu pai, com mais de 30 anos de funcionamento.


Mas fiquem tranqüilos, não vou cair no melodrama. Eu tinha 17 anos e acabara de ingressar em um grupo de teatro; minha mais nova, recém descoberta, paixão. Um grupo peculiar, formado por pessoas mais velhas que eu; uma jornalista, uma publicitária, dois professores, um pequeno empresário, duas artistas plásticas, uma advogada e um juiz. Sim, não era um grupo de teatro profissional. Contudo era totalmente politizado; dentro de princípios socialistas. Na época que ingressei no grupo, eles estavam abandonando o palco italiano, partindo para o teatro de rua, para o contato mais direto com o público; para uma relação mais sólida entre a mensagem crítica, social e política, e o seu receptor mais importante, o “cidadão comum”. Minha primeira experiência efetiva e irreversível como ator foi encenando um sketch nas portas das fábricas, em Novo Hamburgo (RS) em 1992. Fazendo campanha política para o candidato à prefeito do PT.


Claro! O PT! Que outro partido oferecia tamanha identidade ideológica para intelectuais comprometidos com a democracia e a justiça social? Que outro partido oferecia uma saída nova para o triste quadro político, que parecia (parecia?) irremediavelmente consolidado? O teatro e o PT foram, sem dúvida, ferramentas sem as quais eu jamais teria me livrado do pensamento burguês individualista. Durante meu envolvimento, não filiado, com o partido, conheci sua luta histórica por direitos e oportunidades iguais na pirâmide social; a histórica e fundamental luta pela sindicalização e a defesa dos direitos dos trabalhadores. E, finalmente aprendi a respeitar e admirar um homem e sua luta: o nosso atual presidente.


E assim, como a ordem cronológica deste artigo me obriga, chegamos aos assustadores dias correntes. Antes tivessem meus heróis na política brasileira morrido de overdose, como na música do Cazuza. Aqui, hoje, eles morreram em vida, pasteurizaram-se de forma vexatória, prostituíram-se, nos deixaram sem opções e, seu pior legado, é a completa apatia, o desinteresse e a desinformação de uma nação inteira. O povo cansou. Se o voto não fosse obrigatório, como nos EUA, talvez uma parcela bem maior da população aqui não se daria ao trabalho de sair de casa para escolher entre um bando de clones, ou seja, nosso cenário político atual. Daí sabe-se lá que George Bush elegeríamos aqui. E a desculpa de que não há uma ditadura para mobilizar a nação, nem um presidente que abusava do bom senso para roubar o país, como o Collor, não cola. Até porque, em muitos aspectos nossa realidade é pior do que nos tempos da ditadura, ainda que em outros aspectos não seja. E quanto a abusar do bom senso para roubar o país... “Faz favor né”! não sei se podemos nos dar ao luxo de não votar, acho comodista. O caminho mais fácil. O certo seria educar e informar todo mundo. Politizar todo mundo.


A apatia política coletiva que vivemos no Brasil, instituiu-se a partir de duas “faltas”: a falta de conhecimento, de informação e a falta de opção no panorama político do país, dos políticos disponíveis no mercado. E o mercado também! Esse capitalismo colonial que ainda vivemos, que reforça todo os dias aquele pensamento, “governe quem governar, o nosso está garantido” (nem que “o nosso” seja uma cesta básica em troca de voto); ou seja, somos uma nação despedaçada, sem esperança. A cada dia que passa cristaliza-se mais e mais a idéia de que: “O que importa é fazer o seu. Do jeito que for. Do jeito que der. O resto que se exploda!” E aí está o nó, porque a alienação política só pode ser vencida coletivamente. Quando superarmos a triste constatação feita por Nelson Rodrigues, de que “toda a unanimidade é burra”. Porque tem sido mesmo não é? Somos um povo, cuja grande maioria, ainda não tem acesso à informação, não tem nem o que comer. E, sem informação, não há o quê construir.


Precisamos aprender. Precisamos de conhecimento. Para acharmos meios eficazes de cobrarmos honestidade e justiça nesse país. Para acharmos algo novo no horizonte, que não seja mais do mesmo. Dia desses, o nosso presidente (esse cara que um dia eu admirei) disse que não quer indicar nenhum sucessor para a presidência; porque ele acha a alternância de poder um fator importante na democracia. Seria, se junto com os “governadores” mudasse a forma de governar. Mudasse para algo diferente dessa farsa que vivemos, onde achamos que está tudo bem porque a inflação está sob controle e sobra um dinheirinho pra fazermos uma prestação nova no comércio.


Mas essa mudança, profunda e radical, é para países com pressão social de fato. Países portadores de feridas históricas, como a Alemanha, onde o povo sabe dar valor a liberdade e exige seus direitos como poucos! Um povo que amadureceu a força. Como eu, modéstia a parte, depois que meu castelo pequeno burguês desmoronou. Graças a Deus, tenho certeza que sou uma pessoa bem melhor do que teria sido lá no alto do castelo. Mas o sonho do brasileiro, ainda é o sonho do pequeno burguês. Os nossos exemplos são esses. O Lula virou um alienado, daqueles que “não sabe” o que acontece ao seu redor. E se você entrar numa sede do PT hoje (pelo menos na sede estadual em Florianópolis – SC, tenho certeza) você vai encontrar um bando de “novos ricos”, de carro importado, tênis Nike e obesos, de tanto churrasco!


Pequenos valores, exceto os calóricos. “Novo riquismo” colonial. Pequenas crianças gananciosas, ávidas pelos novos doces que, agora, podem provar, nessa “Fantástica fábrica de indivíduos”. Indivíduos, no pior sentido da palavra: seres isolados em suas ambições mesquinhas e pessoais. Egoístas e alienados, ei-nos aqui!