sábado, 24 de fevereiro de 2007

Sexto tiro - 05/12/2006



Deus é você, o diabo, eu, o Cantus Firmus, as baratas e tudo mais que existe.


A palavra é deus. Deus não é palavra. É sua reflexão. Seu reflexo. Sua ação. A palavra posta em prática, que deixa de ser palavra, por jamais caber nela. Sua transformação. Seu oposto, sua antítese. Deus não é tese. Não é teoria. Tão somente prática. Toda e qualquer prática está impregnada de deus.

Simpatizo com pouquíssimas religiões. Não pratico nenhuma. Os rituais e o respeito individual do Candomblé são fascinantes, ainda assim, estou longe de ser um praticante. Mas, a cada dia que passa, sinto mais e mais presente, a me rodear, o invisível, o misterioso, o que te arrepia a nuca e atravessa o mundo indiscriminadamente; aquilo que, no ocidente, convencionou-se resumir na palavra deus.

Não acredito que nenhuma bíblia, nenhuma palavra, nenhuma língua, nenhuma tábua, tenha sido forjada por mando divino. Pois no divino não há o mando. Se deus é toda a criação, então não precisa da palavra. O homem sim. São raras as palavras dos homens que valem a pena serem guardadas. E, com certeza, não estão nas cartilhas religiosas. Deus não é palavra, é planta, areia e mar. Não somente o homem é a imagem de deus, mas o sapo a barata e a minhoca também. Não só as virtudes, mas os vícios. Não só a beleza, mas o indizível horror. Deus tem todas as caras do mundo. Inclusive a do diabo.

Deus e o diabo são vizinhos de longa data. Como siameses. Moram no mesmo condomínio, dividem o mesmo banheiro e gerenciam o mesmo negócio; um ciclo contínuo, um experimento adolescente para a feira de ciências, uma torta espiral, de infinitas formas de vida, que evolui e involui, lenta, sempre a caminho do mistério. Deus e o diabo jogam o melhor jogo do mundo.

O homem é peça destacada na configuração atual do tabuleiro. Ontem perdeu a vez de jogar e amanhã, talvez, caia na casa do “volte para o início do jogo”. E seremos subjugados por uma forma de vida inteligente superior e tudo acabará pra nós; no melhor filme catástrofe de todos os tempos: a raça humana julgada, por alienígenas mais inteligentes que nós, indigna de prosseguir sua existência; por conta de seus atos vis, provavelmente de americanos: Hollywood seria nossa maior punição. Para as “pecinhas” arrogantes do tabuleiro. Para os que desafiaram o sonho de liberdade, de um “povo democrático”, que só queriam ajudar seus semelhantes e acabaram matando todo mundo.

Mas ainda assim somos livres. Porque deus é Sartre, mas também é Napoleão. A ilusão da liberdade. A alma inquieta. Angústia apaziguada somente no reencontro com a natureza. No reconhecimento de deus; da presença do divino e do mistério na nossa vida medíocre. Deus é simples, quando se aceita seu mistério.

O homem é carente e inseguro. Por isso que o simples e instintivo ato de religar-se, está impresso em tantas encadernações e línguas distintas. Deus não cobra dízimo, porque já nos possui por completo. Enoja-me a manipulação da ignorância através da fé, da carência e do desespero humanos. Inspira-me atos terroristas. Arcanjo Gabriel no extermínio de um mal inquestionável. Eu desafio qualquer pastor desta terra a me curar! Deixo até escolherem o vício, que são muitos, todos divinos. Deus é amor, sob qualquer forma, desde que recíproca. E é piegas mesmo, como não ser, se somos patéticos.

Deus também não é o medo e a punição cristã, que não cobra dízimo, mas pode te mandar pro inferno. Para outro inferno. Mas as grandiosas obras arquitetônicas erigidas pelo cristianismo, são moradas de deus. Também. Não pelo cristianismo, mas pela criação magnífica do homem, pura arte na forma de arquitetura. A verdadeira arte é sempre obra de deus, pelas mãos do homem, a criação recriada, reprodução da vida em cores invisíveis; o mistério desvelado, louvado, perpetuado.

O artista verdadeiro, aquele que aceita o mistério e reencontra o mágico, em um ritual, aonde ele conduz e compartilha o divino em sua manifestação mais sublime: a arte; esse sim, é o verdadeiro soldado de deus. Não os sacerdotes e seus sermões.

Artistas! Como Jefferson Bittencourt e o grupo Cantus Firmus; homem de deus, ciente do poder transcendental de sua arte, grandioso maestro, mediador de experiências únicas, de magia, de encontro, de reconhecimento e significação. Poder divino de poucos, que não foram escolhidos; são abnegados, devotos de seu ofício, sua arte, seja qual for. Um concerto do Cantus Firmus é o melhor exemplo que vi atualmente do que estou falando. Condutor radical para um estado diferenciado. Música em quatro dimensões, visível ao espírito Quem precisa de bíblia pra falar com deus, depois de ver os caras? Quem precisa falar?

O livre arbítrio é o jogo. E deus descansa nas sombras, a nossa espera. Numa oração ancestral ou no mais moderno espetáculo; em catarse coletiva ou na mais absoluta solidão: escreva sua bíblia. Batize o seu senhor. Porque vós, também... sois deus! Ó fardo libertador. Cruz, da qual não há como fugir.




Agradeço ao Marcelo Pimenta que me aconselhou rezar; pela primeira vez repeti esse ritual espontaneamente, originalmente. Entendi cada palavra da ladainha, e pude respondê-las com ação.

Agradeço ao Cantus Firmus – Beatriz Sanson, Maria Cristina Figueredo, Jefferson Bittencourt, Eduardo Serafin, Daniel Signorelli, Marcelo Aguiar – por nos proporcionar uma experiência de pura arte, tão completa, tão tocante, tão maravilhosa. Especialmente agradeço ao Jeff, que me faz chorar sempre com sua arte. Um choro contente, ancestral, da alma mesmo, revelador; do quanto a palavra “arte” pode significar.

Nenhum comentário: